Mediação Transformativa: Uma Via para Lidar com a Diversidade em Diferentes Contextos – da Família à Comunidade

Publicado por em 29/10/2012 no canal ARTIGOS | 1 Comentário

por Lucia Fialho Cronemberger e Silvana Cappanari

Nossos desafios…

Buscar uma prática, norteada pela crença de que através de conversas, podemos construir novos caminhos para as questões conflitivas, visando gerar uma cultura da inclusão e da paz. Nesse sentido temos trabalhado na mediação, em diferentes contextos sociais,em parcerias com outros profissionais de diversas áreas. Pensamos compartilhar com vocês algumas de nossas experiências transdisciplinares, como estimulo para gerar reflexões.

Utilizamos dois recortes da nossa experiência: um no atendimento em equipe, de famílias em litígio, encaminhadas por um Fórum de São Paulo e outro de um workshop desenvolvido no curso de especialização “Educação em Saúde”, na Universidade Federal de São Paulo, EPM.

…no velho paradigma…

Como sabemos, vivemos em uma sociedade “organizada em um paradigma constituído de crenças e/ou valores científicos, éticos, culturais e morais, onde o conhecimento é entendido como objetivo e fixo, isto é, um sistema fechado e estático, onde as respostas às questões ficam disponíveis e aguardando serem descobertas. As práticas profissionais, assim como os desenvolvimentos técnicos e científicos, encontram-se também enraizados e fundamentados neste paradigma”.( Cappanari, et al, 2000, p 336 )

Condizentes com esta visão, as relações profissionais estão pautadas num saber que corresponde a um poder. Geralmente, é neste modelo que a sociedade como um todo e as famílias, em particular, buscam soluções para suas questões, através do “saber” dos “especialistas” como: advogados, médicos, terapeutas, juízes, e outros.

… no novo paradigma…

Procurando nos encaminharmos para modos de viver que promovam transformações profissionais e pessoais, onde as relações sociais sejam pautadas no reconhecimento do outro, é que vamos nos organizando para a construção de uma sociedade mais humana e digna. Na busca de respostas para nossas inquietações é que encontramos formas de nos pensarmos e nos organizarmos, não só como seres humanos, mas como cidadãos e como profissionais para podermos fazer frente às nossas necessidades. Nos transformarmos assim em animais capazes de fazer “uma dobra sobre nós mesmos”, isto é, em humanos que se pensam, se transformam e lutam por um modo de viver que promova transformações e crescimento.

O conhecimento já não se dá por uma via de mão única, mas por um processo relacional, encarnado. É uma construção social, uma prática de conversação, que inclui uma ideologia, um pensar, um sentir e um agir. Desta forma, o profissional “pós-moderno”, é um colaborador deste processo relacional, no qual conhecimento e conhecedor são interdependentes, necessitando de aferimentos constantes de seus “poderes” e posturas.

…dando voz, nos incluímos e incluímos os outros…

Nós profissionais, terapeutas familiares e mediadores, especialmente os que se pautam nos novos paradigmas – os sistêmicos, construtivistas, construcionistas sociais – descobrimos quão útil na nossa prática, tem sido “con-versar”, no lato senso. Sabemos que dar voz (ouvindo com interesse, com curiosidade, questionando, refletindo, etc) é uma poderosa forma de se incluir e de incluir o outro.

… o nosso norte…

É seguindo um pouco este norte, pessoalizando e corporificando nossas experiências, observando o nosso “corpo-processo”, que buscamos pessoas, relações e idéias que promovam, não só o nosso crescimento e a nossa felicidade, mas também promovam uma cultura da inclusão e da paz.

Neste sentido, encontramos pessoas e ferramentas que vão facilitando a nossa prática ou, pelo menos, nos estimulando a continuar na busca de um mundo mais digno e justo. Nesta forma de nos relacionarmos, na rua com as pessoas, na clínica com os pacientes, nas empresas com grupos de trabalho, nas instituições de ensino, na nossa própria família, numa atitude transdisciplinar, inspiradas na Educação Somática Existencial, na Mediação Transformativa e na filosofia do Budismo Tibetano, temos encontrado formas de conhecer mais condizentes com nossas crenças, valores e ideologias.

Poderíamos citar uma série de trabalhos que estamos desenvolvendo em diferentes parcerias com profissionais de diferentes disciplinas, mas pensando no tema deste trabalho, recortamos dois atendimentos que ilustram nossa prática além dos consultórios e hospitais.

… um recorte de nossa prática…

O primeiro recorte refere-se a um projeto que realizamos juntamente com Vânia Yazbek e Célia Bernardes, há alguns anos. Formamos, na época, uma equipe de mediação que, entre outras coisas, fez parceria com um Ofício da Infância e Juventude de um Fórum de São Paulo.

“Esta instância judiciária realiza um atendimento que vai além do sentenciar, isto é, assume a responsabilidade de acompanhamento do caso, para garantir a proteção do menor e/ou o cumprimento da sentença. Esta especificidade de trabalho veio de encontro a um dos principais objetivos da mediação – o melhor cumprimento do acordo/sentença.

A parceria entre as equipes do Fórum e a nossa, exigiu um espaço de conversa com o intuito de favorecer a troca de experiência e o reconhecimento dos respectivos trabalhos. À medida que nossas diferenças foram identificadas e validadas, criou-se uma relação colaborativa, com características próprias daquele contexto.

Ao construirmos a nossa prática, fomos por ela nos “construindo” como equipe e, ao nos relacionarmos, fomos trabalhando nossas diferenças individuais, refletindo sobre nossas práticas e usando como ponto de partida, a epistemologia do novo paradigma. Desenvolvemos nossa capacidade de criar uma linguagem que gerasse um contexto de conversação e de reflexão sobre como lidar com conflitos. Procuramos trabalhar na ecologia social com toda sua complexidade.

Em alguns dos casos de família com conflitos, por nós mediados, a nossa expectativa e a das pessoas envolvidas, era de chegarmos a um acordo de pautas específicas com caráter imediato. Mas, ao longo dos processos de mediação, fomos percebendo que, quaisquer eventuais acordos só poderiam ser vislumbrados a partir de transformações no sistema de relação entre todos os envolvidos. Neste sentido, flexibilizamos nossa previsibilidade, nossos desejos, nosso “saber” e nossa postura como profissionais.”( Cappanari, et al, 2000, p 337 )

No primeiro recorte de nossa experiência selecionamos dois casos de famílias que nos foram encaminhadas para atendimento durante esta parceria com o Fórum. Casos estes que nos foram encaminhados, mais precisamente, pela Triagem do Ofício da Infância e Juventude.

No 1º caso:

– Francisco e Bianca formavam um casal, separado judicialmente há mais ou menos 5 anos, sendo que ela ficou com a guarda dos três filhos e ele, o pai, responsável pela pensão para prover as necessidades da mulher e dos filhos. O filho mais velho (de 17 anos) e a mais nova (de 13 anos) moravam com a mãe e um tio (irmão desta) na casa da avó materna. O filho do meio (com 15 anos) estava residindo na casa de uma tia materna “com mais posses”(sic), com quem se identificava. Bianca, a mãe, procurou o Fórum novamente, depois da separação, para rever duas questões: uma relativa ao valor da pensão e a periodicidade aleatória de seu pagamento e a outra, relativa a segurança física dos filhos que moravam com ela. O irmão de Bianca, foragido por questões de tráfico de drogas, estava “escondido” na mesma casa onde ela, seus dois filhos e sua mãe moravam. Este irmão vinha ameaçando a integridade da família, situação que requeria providências urgentes de mudança de moradia. Para esse fim Bianca precisava da ajuda do pai das crianças, no sentido de arrumar um local seguro para morarem, tendo para isso que assumir um compromisso de aluguel. Portanto, necessitava de uma redefinição de pensão, quanto a sua periodicidade e ao seu valor. Isso permitiria que reorganizasse com os filhos, uma forma mais segura de deixa-los para poder voltar a um trabalho que lhe provesse o sustento. Como suporte para suas dificuldades, Bianca já fazia um tratamento psiquiátrico e psicológico.

O Fórum nos encaminhou esta família, na tentativa de ajudar os pais a se entenderem sem reabrir o processo judicialmente.
Trabalhamos diferentes aspectos como, por exemplo, como cada um percebia as necessidades dos filhos, quais seus respectivos papéis, as diferentes expectativas entre eles, etc. Conseguimos, a partir disso, envolver mais o pai na situação, de forma a redistribuir para ambos, não só o sustento, como os cuidados para com os filhos, dividindo de forma mais “justa” as responsabilidades financeiras e afetivas.

A partir de uma avaliação, realizada seis meses após o término do processo de mediação, pudemos testemunhar algumas mudanças, tais como: – os pais passaram a conversar entre eles como pais e não mais como ex marido e ex esposa; Bianca processou melhor a separação conjugal, se potencializando para uma maior autonomia retomando, entre outras coisas, um trabalho remunerado e Francisco participou colaborativa e financeiramente da organização de um espaço para a efetiva mudança de Bianca e seus filhos da casa da avó.

Uma vez re-estabelecido o diálogo entre os pais, e portanto, transformada a relação entre eles, puderam finalmente abrir mão de um “juiz” nas suas questões. Essas transformações e conquistas é que nos levaram a considerar exitosa, essa mediação.

No 2º caso:

– Eunice e Vera eram duas mulheres, com suas respectivas famílias, em litígio pela guarda de Rafaela (menina de 8 anos). A equipe técnica do Oficio da Infância e Juventude tinha esgotado seus recursos para lidar com elas. Mesmo já estando este caso em processo judicial, nos foi encaminhado na tentativa de abrir alguma via de conversa entre as duas famílias. A equipe técnica acreditava que qualquer que fosse a decisão judicial, era mais conveniente para a menina, que as famílias tivessem uma possibilidade de diálogo.
Eunice e sua família estava com a guarda da Rafaela, cuja mãe biológica – Vera – estava brigando para reavê-la sob sua responsabilidade. Essa briga começou quando a menina foi levada pela avó materna aos cuidados da Eunice, tendo em vista que sua mãe biológica era uma adolescente que já tinha deixado outro filho com esta e não tinha condições, na época, de criar a menina. A mãe biológica estava viajando quando, “por alguma necessidade” (sic), Eunice precisou formalizar a guarda da menina. A família desta senhora criou um vínculo afetivo com Rafaela e por isso brigava na Justiça para não devolve-la à mãe biológica. Visando ganhar o processo, desqualificavam constantemente a mãe e sua capacidade como tal.

Com o processo de mediação as duas “mães” conseguiram conversar diretamente sobre os seus motivos para “brigarem” e foram conseguindo aos poucos, conversar mais sobre a menina e suas necessidades, do que sobre o interesse de ganhar a lide na justiça. Isto porém, não as impediu de abandonarem o processo de mediação pois se deram conta que estavam presas em um paradoxo ; caso continuassem avançando nas conversas se vulnerabilizariam perante a briga judicial. A condição que haviam imposto para participarem da mediação era de não desistirem do processo judicial, que havia sido, suspenso temporariamente.

Soubemos depois, que a Justiça determinou que a menina voltasse para morar com a mãe biológica. Acreditamos que o grau de amadurecimento, que estas duas senhoras conquistaram no processo de mediação, conversando exaustivamente sobre as estratégias de convivência da menina com as duas famílias, lhes permitiu um futuro “saudável” ou menos traumático.

Pensamos que estas mudanças relacionais, dão subsídios para que as pessoas cheguem a uma construção de acordos sobre suas próprias questões e que, como numa meta aprendizagem, possam gerar contextos de conversação em situações futuras, sempre que o necessitarem.

… outro recorte…

Nesse mesmo espírito, e desta vez em parceria com a Marise Lafourcade Rayel, administradora, pedagoga e terapeuta e educadora somática existencial – parceira da Silvana num projeto transdisciplinar na Escola do Futuro na USP- é que desenvolvemos um workshop sobre Transdisciplinaridade.

O pedido inicial para esse trabalho foi feito à Silvana, pela coordenadora do curso de pós-graduação “latu senso” em “Educação para Saúde” da Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina. Esse curso é desenvolvido pelo método de “resolução de problemas” e os professores sentiam uma falha na bibliografia sobre “transdisciplinaridade”, termo muito mencionado atualmente. Acreditando no conhecimento como um processo relacional encarnado, é que propusemos a formação de uma pequena equipe multidisciplinar que organizaria com o grupo, um workshop. Assim conseguimos duas manhãs de trabalho vivencial com este grupo de professores/alunos e a mediação entrou não como um tema mas como uma ideologia e um modo de construção do próprio workshop.

Usamos o formato de “equipe reflexiva” – de Tom Andersen (1999) – adaptado ao contexto de aprendizagem, para avaliarmos, num processo reflexivo, as transformações ocorridas ao longo deste trabalho. Os resultados foram muito positivos e interessantes e como, em toda avaliação de processos, as transformações vão surgindo gradativamente tanto individualmente como na dinâmica do próprio grupo. Temos tido o retorno da própria coordenadora do curso, de alguns testemunhos de resultados, considerados pelos próprios professores e alunos, como positivos e estimulantes.

Algumas considerações…

Com esta apresentação, pensamos levantar algumas reflexões sobre a importância da implementação de projetos de mediação transformativa, ou de uma cultura da mediação, nos mais diversos contextos sociais: escola, família, empresa, comunidade e outros.
Na nossa experiência, constatamos que a Mediação Transformativa é uma ferramenta valiosa que permite:

  • uma prática de administração e coordenação de situações de conflitos, numa abordagem transdisciplinar, que leva em conta tanto a complexidade dos sistemas, como as singularidades de seus membros;
  • o favorecimento de novas práticas, que poderão propiciar aos técnicos, uma reflexão em relação à sua postura profissional – pautada por uma ética direcionada no cuidado e no reconhecimento da autonomia do outro, como co-responsável no processo de uma construção social;
  • o favorecimento de meios culturais capazes de gerar novos procedimentos e novas formas relacionais – na procura de uma cultura da paz;
  • a aprendizagem de negociação para a resolução de problemas futuros;
  • a aprendizagem de gerar e operar em contextos de reflexão e conversação, como potente multiplicador de uma ética de inclusão do diferente;
  • a organização de uma interação mais “democrática” entre os profissionais e os clientes, onde as respectivas visões de mundo são consideradas;
  • a co-construção de um conhecimento “encarnado”.

Alguns efeitos transformativos, inerentes a um processo de mediação, como: a mudança na relação entre as pessoas envolvidas no processo, um posicionamento mais fortalecido de cada pessoa consigo mesma, uma maior autonomia para lidar com suas próprias questões, uma maior consideração pelo outro, etc. – constituem uma forma de prevenção de continuidade e cronicidade dos conflitos.
Segundo Dora Schnitman: _ “as metodologias para a resolução alternativa de conflitos, podem ser definidas como práticas emergentes que operam entre o existente e o possível. À luz de novos paradigmas tais processos emergentes podem ser entendidos como processos auto-organizativos em sistemas complexos, processos nos quais os participantes ao construírem renovadas possibilidades, na resolução de seus conflitos, reconstroem suas relações e reconstroem a si mesmos”. ( Schnitman, 1999, pg 19 )

…. nossas reflexões…

Por ser a mediação transformativa, um processo construído conjuntamente com todos os envolvidos nas situações conflitivas, atua preventivamente, para outras situações complexas futuras, na medida que provê destreza e meta comunica às pessoas outras possibilidades para lidarem com suas diferenças. Acreditando na utilidade e na potência dos processos reflexivos, como cidadãs e profissionais na área de saúde, julgamos importante nos perguntarmos:

  • Como compomos ou construímos nossos relacionamentos e conhecimentos?
  • Quais os valores que norteiam os nossos vínculos e as nossas práticas?
  • Como nos flexibilizamos para enfrentarmos os impactos das mudanças?
  • Como nos relacionamos com o diferente? Numa postura de inclusão ou de exclusão?

 

Referências Bibliográficas:
– Andersen, T. (1999) – Processos Reflexivos. Rio de Janeiro: Inst. NOOS/ITF.
– Cappanari, S; Cronemberger, L; Bernardes, C; Yazbek, V. (2000). “É Possível Evitar a Cronicidade do Conflito Litigioso?”, in Anais do III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica. São Paulo: U.P.Mackenzie.
– _________. (2000). “Mediação Transformativa: Uma Experiência de Mudança de Paradigma”, in Anais do III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica, pp.336 – 337. São Paulo: U.P.Mackenzie.
– Schnitman, D.F. (1999). “Novos Paradigmas na Resolução de Conflitos”, in Dora. F Schnitman; Stephen Littlejohn. (org) – Novos Paradigmas em Mediação. pp 17- 27. Porto Alegre: Artmed.
– Suares, M. (1997) – Mediación. Conducción de disputas, comunicación y técnicas. Buenos Aires: Paidós.

One Comment

  1. Texto conciso em termos de ecologia social que abarca procedimentos generativos transformativos, possibilitando reflexões sobre transdisciplinaridade, dinâmica de grupo, cultura de mediação, transformação no sistema relacional. Excelência na aplicação de conversação e reflexão aos participantes nos casos relacionados, na aplicação de estrutura pedagógica e prospectiva, possibilitando benefícios aos envolvidos no processo e a nós mesmos. Muito obrigada.

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